Augusto e a Árvore
Hélio Pólvora
Sei de cor aquele soneto do velho Augusto dos
Anjos sobre a árvore que um pai malvado quer derrubar a todo custo,
e que um filho sensível tenta proteger. “Meu pai, por que sua ira
não se acalma?/ Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?
Deus pôs alma nos cedros, no junquilho; /Esta árvore, meu
pai, possui minh’alma!”.
Mas a árvore cai “ao golpe do machado
bronco”. O moço, abraçado a ela, também morre.
Aparentemente, um belo soneto ecológico. Tudo indicaria que Augusto
dos Anjos, sendo poeta profundo, tinha algo de visionário, e profetizou
a época do movimento ecológico. Eu também pensava
assim. Mas eis que um pesquisador, desencavando papéis, demonstra
que a literatura, bem menos que simples sonho, é mero compartimento
da realidade.
O nome do pesquisador literário é
Galdino Matos Siqueira, paraibano, da mesma terra que viu nascer Augusto.
Segundo ele, o rapaz Augusto, que era um feixe de nervos tangido pela busca
permanente da Beleza, ensimesmado e sonhador, apaixonou-se por uma moça
retirante, uma espécie de Gabriela de Jorge Amado. E o pai, um patriarca
dos sertões, ou a mãe, com sentimentos racistas e sociais,
teria impedido o conúbio de forma violenta. Surrada, a moça
abortou e teria morrido.
Nesse caso, se verdadeira a interpretação,
a árvore no soneto famoso é a metáfora. Augusto
utilizou a metáfora poética para fazer a denúncia.
O moço triste que “se abraçou com o tronco/ e nunca mais
se levantou da terra” é ele. A mãe (devia ser ela, porque
Augusto dedica três sentidos sonetos ao pai, e da mãe não
fala uma vez sequer) não teria matado apenas o amor de Augusto;
matou-o, também, para a vida. O Eu e Outras Poesias, publicado no
Rio de Janeiro, para onde se mudou o poeta, é o seu testamento.
À morte espiritual do poeta, que sobrevivia como professor primário,
advém, em Leopoldina, Minas Gerais, onde foi dirigir uma escola,
a morte do corpo. “E nunca mais se levantou da terra!”, assim termina o
soneto.
Um outro poeta, o Soares Feitosa, passou-me
um e-mail do Ceará, dando conta de tal descoberta, que me desconcertou,
para não dizer que estarreceu. Enquanto espero mais informações
sobre o resultado da pesquisa, que certamente virá a lume com todos
os pormenores e provas documentais, asssinada por Galdino de Matos Siqueira,
ponho-me a pensar nos mistérios que o texto literário esconde,
disfarça, dissimula. O velho Machado de Assis, preocupado com a
sua condição de mulato pobre, na sociedade ornamental e rica
do final do século passado no Rio de Janeiro, era inimigo de confissões
autobiográficas. Escondeu o quanto pôde, torceu, virou pelo
avesso. Chegou a escrever tão bem que, na opinião dos seus
contemporâneos, não era negro; era grego. A cor da pele e
a gagueira desapareciam nas entrelinhas dos símbolos e metáforas.
Um irmão de Augusto, Alexandre dos
Anjos, morou no Rio de Janeiro. Era advogado, representava os interesses
do Copacabana Palace Hotel. Solteirão, tinha lá apartamento
cativo, o porteiro o saudava, os empregados o tratavam bem. Alcancei-o
já idoso, magro como o irmão, mas de inteligência viva.
Para combater a solidão, convidava-me, vez por outra, a almoçar
com ele, aos domingos, perto da piscina. E conversávamos quase sempre
sobre Augusto dos Anjos.
Nunca lhe arranquei uma informação
nova e significativa. Alexandre dos Anjos tinha orgulho do irmão
Augusto dos Anjos, mas nada dizia que já não estivesse nos
livros dos biógrafos e críticos, ou que não constituísse
matéria normal. O Augusto que repontava das suas lembranças
era o poeta sofrido, azarado, de sensibilidade ferida por uma realidade
brutal. Somente isso.
Alexandre morreu pouco depois. Levou consigo
algum segredo, se é que o tinha. Era homem fino, de maneiras corretas.
Passo arrastado, ombros curvados. Já estava muito velho, talvez
não quisesse mexer no fundo das gavetas onde são sepultados
esqueletos. Se segredo houvesse, demonstrou invulgar resistência,
porque nos velhos é o passado que conta: o tempo retroage, o passado
se impõe e sobrepõe como realidade atual. E é penoso
resistir-lhe.